Pe. Antonio D'Almeida Morais Júnior
Edição de 1947 - 125 págs
O Homem e Liberdade
É o homem um ente extraordinário. Não é
simplesmente matéria, porque a matéria lhe repugna, na sua contínua inércia, na
sua limitação espacial, no seu passivismo, na sua necessidade. Não é
simplesmente matéria, porque, se a matéria apela para o marasmo, a
tranquilidade necessitante, ele traz em si a inquietude que o dinamiza. Se a matéria
se limita na extensão, na ubilocação extensiva, ele sente em si um surto que se
desprende dos limites, que não se enquadra nas linhas intransponíveis de uma
situação contingente. Se a matéria se satisfaz numa exigência puramente finita,
na realização de tendências puramente mecânicas, ele traz consigo a
insatisfação continua, o desejo que cresce com a insaciabilidade das
aspirações, que não descansa nos seus voos e que, de desilusão em desilusão,
como o voo desprendido de sonho em sonho, tem horror à forma e às necessidades
limitativas da matéria. Ele é também matéria. Mas matéria unida à luz! E tudo o
que nele foge da acidentalidade e do limite está nessa luz, nesse clarão
permanente, nesse espírito que nós chamamos a alma. Eis o homem! A matéria que sobe
e a cintila do céu que desce, o resumo do mundo material que se encerra no seu
corpo e o espírito que é a sua alma.
A filosofia, a ciência, a história, a poesia, a
arte debruçaram-se sobre esse abismo para perscrutá-la, como o viajante,
cansado da poeira do deserto, se detém ante a figura estranha da esfinge que
fala na solidão a palavra misteriosa do enigma. E todos têm visto nesse
conjunto admirável e assombroso três afirmações inegáveis – o espírito, o
coração e a vida. O espírito fulgura na sua inteligência, na sua vida e no seu
coração. Ele é a alma desse abismo. Toda a irrequieta atividade do homem, toda
a sua ilimitação está no espírito. Só vive no infinito e do absoluto! Enchei-o
do que vós o quiserdes. Bentham quis enchê-lo de um número de prazeres superior
ao número dos infortúnios. Stuart-Mill desejou locupletá-lo com os prazeres
qualitativos; Sócrates, com a satisfação das suas próprias tendências; Thierry,
com sabedoria; Berthelot, com o passar de duas centúrias; Hello, com a ciência;
Teofrasto, com a riqueza; Pirro, com a apatia; Calístenes, com a ausência das
dores; Aristipo, com o hedonismo realizado; Epicuro, com a lama da volúpia... E
após a agitação de todos os grandes sonhos do materialismo e do cientificismo,
ele ficou palpitando angustiosamente sobre os escombros de todas essas ambições
como a flor entristecida e murcha sobre as lajes frias do sepulcro. Erra quem
procura fragmentar a entidade humana ou quebrar o elo espiritual que a prende
ao supremo Bem. O homem pouco diferenciado de Büchner (1), o homem da seleção
natural de Huxley (2), o homem da evolução de Darwin (3), o homem-organização
puramente material, o homem força e matéria (4), o homem-máquina de La Mettrie (5),
o homem puramente orgânico (6) de Cabanis, aí estão como o eco de um
desespero secular a clamar a eterna opressão da dignidade humana. As teorias
que se multiplicam, fragorosamente, negando-lhe o substractum espiritual,
tornaram-no uma dolorosa incompreensão.
O homem da natureza (7), que Rousseau forjara, na
sua concepção absoluta da bondade humana, na plenitude de suas perfeições, é
uma dolorosa visão diante das tendências inegáveis da própria criança, que um
ilustre autor chamara de pequenas perversidades do anjo – “petites perversités
de l’ange”.
O homem do progresso – termo necessário da marcha
ascensional da natureza, que vai subindo de grau em grau, de perfeição em
perfeição, na aquisição contínua de novas elevações, que Fourier preparara,
como Spencer, transplantando a lei progressiva necessária do mundo material
para o mundo humano, é uma negação da realidade que sentimos no profundo abismo
de nós mesmos.
O homem da razão, da filosofia dos séculos XVIII e
XIX, na posse perfeita de todas as qualidades necessárias ao seu próprio
destino, sem o menor desequilíbrio na harmonia perfeita de todas as suas
potências, sem necessitar de coisa alguma, porque todo ser traz consigo as
qualidades próprias – confundindo a bondade metafísica ou ontológica com a
bondade física e moral – é uma bela visão dos nossos anseios, mas contrastante
com a eterna luta de que nos fala S. Paulo, na sua Epístola aos Romanos (8).
Toda essa negação vai colocando o homem na categoria de simples autômato, de
simples incapacidade diante da marcha surda dos fatos, sem força para interferir
nessav luta cósmico-social que Marx criou, adaptando ao materialismo frio de
Feuerbach a dinâmica de Hegel e fazendo de todo o amargurado drama da
humanidade apenas um simplismo econômico, como o denominou Paul Gille (9). A
essência da liberdade vai assim perdendo o seu sentido na agitação incolor da
massa, onde somente há o homem-indivíduo e não o homem-pessoa. É por isso que
nas civilizações de estruturação puramente material surge como única dominância
o individualismo, e daí vem a negação do homem no seu verdadeiro valor.
Os dois cimos mais expressivos a esse respeito são
Nietzsche e Marx. Ambos, aparentemente antagônicos, se identificam na gênese da
sua concepção filosófica. Em Nietzsche, om homem se destrói sob a forma
individualista; em Marx, sob a forma coletiva. Mas essa força negativa vem da
mesma fonte: o aniquilamento da personalidade. Sentindo que o homem é
humilhação e vergonha, Nietzsche dirige a marcha para o super-homem, mas para
alcança-lo rompe com o humano, nega o valor da personalidade. Ele, como acentua
Berfiaeff (10), prega a rudeza para com o homem, me nome de fins super-humanos,
em nome de um futuro longínquo, em nome da sublimidade. Mas tudo isso
processando a negação do homem real. Marx, considerando a individualidade
humana um preconceito da filosofia burguesa, pretende esmaga-la sob o peso da
coletividade. Na sua filosofia coletivista há também a destruição da realidade
essencial, porque há negação absoluta da personalidade.
A concepção desse individualismo não se aproxima da
concepção de Goethe e de Herder. No fundo, porém, toda a concepção do puro
individualismo vai destruindo o próprio sentido real do homem. “Vendo nele o
sinal do, precário e do relativo, Cohen e Husserl lutam contra o chamado
antropologismo. Mesmo os chamados antropoteístas como Steiner, o sujeitam às
forças de uma evolução cósmica”, destruindo assim a noção da sua liberdade.
O individualismo anula o complexo profundo do ser
humano, enfraquecendo a sua força, cuja única energia é uma resultante inegável
das bases espirituais da humanidade. E essa negação despolariza o homem,
arranca-o do centro do seu próprio ser para o superficialismo, a periferia,
onde ele se atomiza em fragmentos de incapacidade. A base da liberdade do
homem se firma na própria razão da sua personalidade. Fazê-lo um simples
indivíduo é fraternizá-lo a tudo o que enche o mundo, mas sem a luz da
consciência e a força admirável do espírito. E ele é livre porque é pessoa,
disse Maritain. “Pois o indivíduo está fundado somente sobre os postulados da
matéria, isto é, o princípio de individuação, exigindo que ocupe um lugar e
tenha quantidade. De sorte que, enquanto indivíduos, não somos senão fragmentos
de matéria, uma parte deste universo, distinta sem dúvida, mas uma parte, um
ponto desse imenso reservatório de forças e influências, físicas e cósmicas,
vegetativas e animais, étnicas, atávicas, hereditárias, econômicas e
históricas, cujas leis suportamos”.
Mas a pessoa não se integraliza na marcha
necessária do mundo material. É um mundo a parte. E se integra a si mesma, pela
força da liberdade. Assegura-nos a filosofia cristã: “a pessoa é uma substância
individual completa, de natureza intelectual e senhora de suas ações “sui
juris” (está aqui a essência da Liberdade), autônoma no sentido autêntico da
palavra. Assim o nome de pessoa é reservado às substâncias que possuem essa
coisa divina, o espírito, e que, por isso, são em si mesmas um mundo superior a
toda ordem dos corpos, um mundo espiritual e moral que, propriamente, não é uma
parte deste universo, e cujo segredo é inviolável até ao olhar natural dos
anjos; o nome de pessoa é reservado às substâncias que, escolhendo seu
fim, são capazes de determinar os meios, e introduzir no universo, por sua
liberdade, séries de acontecimentos novos; às substância que, a seu modo,
podem dizer: “Fiat”, e será feito. O que faz sua dignidade é a alma espiritual
e imortal” (11). E é na alma que está a fonte da liberdade “ubi spiritus, ibi
libertas”. Porque as faculdades sobre que repousam as raízes da liberdade são
faculdades espirituais: inteligência e vontade, ou faculdade intelectiva e
faculdade volitiva. A inteligência é o grande olhar puramente cognoscitivo. A
admirável gênese do conhecimento, em todo o seu profundo mistério de
espiritualização pelo Verbo mental, é o simples olhar, sem nenhuma determinação
para o objeto. A vontade, que é a projeção pessoal do homem, é que o leva à
aquisição do objeto ou à repulsa. – Ali, nesse jogo da vontade, a força
livre.
Não que nos inclinemos a esse primado da vontade
que se afirmou na Filosofia germânica, nas doutrinas de Kant, Fichte e mesmo no
pessimismo de Schopenhauer, em oposição ao otimismo ensolarado de Leibniz (12).
Mas na ordem moral, a vontade é a afirmativa do homem, como o é da
personalidade. A inteligência é a gloriosa vanguardeira da vontade. E na ordem
da espiritualização ascendente é de maior nobreza. A grande função da
inteligência é transformar o sensível, por uma quase criação, por meio do
intelecto agente, numa imagem espiritual, que mais e mais se abstraia de tudo o
que é sensível e material.
Nesse sentido espiritualizador do objeto que passa
a viver na própria intelecção, a inteligência adquire uma elevação mais sublime
que a vontade. Porque a vontade tende sempre para o bem, mas, no momento atual
da volição, quase sempre realizado nesse objeto do mundo sensível, e leva na
sua marcha toda a impulsionativa do apetite sensitivo.
Na inteligência há a aquisição e o trabalho sobre a
razão inteligível do objeto, ao passo que a vontade é também sensivelmente
solicitada. Mas há a antecedência intelectual, como no seio augusto da
Trindade, o pensamento (13), ou o conhecimento essencial, substancial, a imagem
consubstancial está no começo incompreensível da atividade de Deus que é
eternamente ativo – “In principio erat Verbum” (14). Porque a vontade é
faculdade cega. Não só na ordem do conhecimento especulativo, mas mesmo na
ordem prática, a retidão da vontade depende da retidão cognitiva da
inteligência.
Não se tratando, porém, das verdades universais que
dirigem o agir, mas do reto uso da própria atividade, a vontade exerce o seu
predomínio. O próprio santo Tomás, sendo intelectualista quando estuda a
gnoseologia, afirma de um modo inegável o valor da vontade, quando se trata da
ação. É, segundo o Doutor Angélico, a vontade que, por sua indiferença a
respeito de todo o bem criado, pela sua liberdade, faz a elevação moral do
homem. É daquela própria retidão que dirige o juízo prático, em cada caso
particular, que depende a atividade prática. A inteligência mais voltada para o
seu objeto próprio, que é o universal, pouco poderá julgar do particular, ou do
bem particular, se não for fixada de certo modo pela vontade. Não é mais
conformidade apenas com a coisa, mas com a retidão do apetite. “Na ordem do
conhecimento do singular operável, a vontade predomina” (15). Só, por
conseguinte, a concepção do homem-pessoa é que nos faz compreender o privilégio
da liberdade, pois que três elementos constituem a personalidade: a substância,
a liberdade e a inteligência (16). O homem, se souber querer, pode desempenhar
um papel no mundo, ele é pessoa. Sua liberdade haure no conhecimento do bem
universal uma indiferença dominadora a respeito de todos os bens particulares,
domina todas as influências do mundo físico e se torna senhora dos seus atos, sui
juris. “Essa independência da matéria na ordem do querer supõe uma
independência da matéria na ordem do conhecimento, e esta última, por sua vez,
supõe uma independência da matéria no próprio ser “operari sequitor esse”,
está aí a verdadeira subsistência”.
Daí nos vem claramente o sentido de que o homem é
livre, não porque a liberdade lhe resulte das agitações dos instintos, dos
agrilhoamentos passionários, como expressão de uma marcha evolutiva e como um
grito da própria matéria, mas porque ele traz consigo o espírito. Ou antes, a
alma, a força vital de todo o seu ser, a forma subsistente do corpo.
Arrancar do homem o sentido espiritual é
desencadear-lhe a tormenta dos instintos, é negar-lhe a elevação da própria
liberdade. É fazê-lo o monstro da apatia que Obblomoff representa no célebre
Romance de Gontcharoff (17). E mesmo nesse negativismo da atividade, quando se
coloca o homem como um bloco que desce da montanha, não, por um auto-dinamismo,
mas, pelo inclinado do plano e pela força do seu próprio peso, ele lança na
solidão em que o enclausuram, esses gritos angustiosos que apelam para um
sentido espiritual, que é a própria base do seu valor entitativo. É a dolorosa
amargura que atassalha o homem em ruínas, a agonia que Kierkegard chamava – “a
doença mental”.
É então que o admirável símbolo de Herman Hesse,
citado por Peter Wust (18), aparece em toda a sua profunda verdade. Aí está o
homem como a figura de um lobo na estepe, em caça irrequieta, lançando no vasto
é gélido deserto da civilização os seus horripilantes uivos, famintos e
sedentos de “eternidade”. Famintos de eternidade! Só na alma há esse anseio. A
matéria foi feita para o tempo. Sua extensão finita não se quadra com a
inextensão da eternidade. E é nessa alma que foge do tempo que está a liberdade
que não se curva às necessidades da matéria.
Quando
Longin (19) afirmara que o sublime não é um som da matéria, mas é o som de
uma grande alma, talvez não se lembrasse que esse som – porque é sublime – é
também a fagulha de uma grande luz fulgurando no íntimo de todo o homem. Que o
faz distinto no seio do pélago da matéria, como a luz do farol no seio dos
mares: - a liberdade!
Notas:
1 Büchner, L’hommem selon la Science, pág. 169.
1 Büchner, L’hommem selon la Science, pág. 169.
2 Reusch, La Bible et la nature.
3 The descente of man.
4 B6uchner, Force et matière.
5 La Mettrie, Homme-machine, Demonstrations Evangéliques, vol. XII,
p. 927.
6 Cabanis, Rapports du moral et
du physique de l’homme, tom. I, pág. 152.
7 Besson, De la notion de
l’homme, 1ª Conf.
8 S. Paulo, Romanos, VII, XV.
9 Paul Gille, Esquisse d’une
Philosophie de la dignité humanine.
10 Berdiaeff, La nueva Edad
Media, pág. 40.
11 Maritain, Trois Réformateurs,
págs. 27n e 28.
12 Lahr, Elementos de Filosofia.
13 Bougaud, Le christianisme, etc. – Tome III.
14 S. João cap. I, 1.
15 Maritain, Trois Réformateurs,
pág. 59.
16 Idem.
17 Berdiaeff, Le Christianismo
et l’activité de l’homme.
18 Wust, A crise do homem no
ocidente.
19 Lacordaire, Conférences – De
la religion comme vertu et passion de l’humanité.
~ * ~
ÍNDICE
ÍNDICE
Apresentando
I.
O homem e a liberdade
II.
Essência da liberdade
III.
O sentimento da liberdade
IV.
Regra referencial da liberdade
V.
Liberdade e necessidade
VI.
Liberdade intelectual
VII.
Liberdade cristã e liberdade liberal
VIII.
Liberdade cristã e Estado
IX.
A Igreja e a liberdade individual
X.
A Igreja e a liberdade dos povos
XI.
O triunfo da liberdade
__________
OBS.: Agradeço ao leitor que possibilitou a esta obra estar aqui. Que Nossa Senhora recompense!
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Em breve lhe darei um retorno, porém se o seu comentário for ofensivo infelizmente terá que ser ignorado, pois aqui não é local para ataques aos ensinamentos seculares da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Aqui o leitor pode estudar para conhecer a beleza e sabedoria do Catolicismo. Salve Maria!